O Governo angolano aprovou legislação (e isso é coisa que faz sem grandes problemas) para enquadrar médicos no Serviço Nacional de Saúde, num processo “célere” e “menos burocrático” face à “necessidade de aumentar a cobertura médica urgente no país” e a assistência sanitária às comunidades.
Ainformação consta de um decreto presidencial que entrou em vigor no final de Abril, e que lembra o investimento na formação e capacitação de médicos que já estão “disponíveis para trabalhar”, numa altura em que só a capital angolana está a braços com epidemias de febre-amarela e malária, com mais de 400.000 pessoas afectadas.
O mesmo decreto define que o ingresso na categoria de interno “faz-se mediante concurso documental” para licenciados em medicina, à parte das normas sobre a entrada no funcionalismo público.
O Governo anunciou o mês passado que iria recrutar 2.000 médicos e paramédicos, angolanos, recentemente formados no país e no estrangeiro, para reforçar o combate às epidemias, que deixaram os hospitais de Luanda sobrelotados.
O ingresso como médico interno geral é feito agora por contrato individual de trabalho celebrado com o Ministério de Saúde, pelo período de um ano, renovável automaticamente.
“A renovação do contrato individual de trabalho fica condicionada ao bom desempenho profissional e comportamental”, lê-se no mesmo decreto, assinado pelo Presidente José Eduardo dos Santos.
No início de Abril foi noticiado que o Estado iria avançar com a admissão excepcional de novos funcionários públicos para a saúde, educação e ensino superior em 2016, segundo uma autorização presidencial.
A informação consta de um decreto assinado pelo Presidente José Eduardo dos Santos, no qual é “aprovada a abertura de crédito adicional” ao Orçamento Geral do Estado (OGE) de 2016, no montante de 31.445.389.464 kwanzas (166 milhões de euros), “para pagamento de despesas relacionadas com novas admissões”.
Angola enfrenta uma crise financeira e económica com a forte quebra (50%) das receitas com a exportação de petróleo, devido à redução da cotação internacional do barril de crude, tendo em curso várias medidas de austeridade.
O Governo prevê gastar o equivalente a mais de 10% da riqueza produzida no país com o pagamento de vencimentos da Função Pública em 2016, mas as admissões, pelo segundo ano consecutivo, voltavam a ficar congeladas, segundo o OGE para este ano.
Para 2016 estava prevista uma verba de 1,497 biliões de kwanzas (cerca de 7,9 mil milhões de euros) com o pagamento de vencimentos e contribuições sociais da Função Pública.
E no terreno como é?
O médico angolano Maurílio Luyela considera que o colapso do Serviço Nacional de Saúde em Angola é o resultado da má gestão dos recursos financeiros e humanos por parte do Ministério da Saúde.
O especialista em saúde pública disse à VOA que o sector debate-se actualmente com a falta de pessoal qualificado porque, por alegada falta de verbas, não abriu qualquer concurso público para a admissão de especialistas angolanos que se formam nas faculdades do país. Talvez agora, se se cumprir esta promessa, a situação melhore.
Maurílio Luyele acusa os gestores do Ministério da Saúde de acharem mais importante comprar carros de luxo para directores em detrimento de equipamentos hospitalares.
“É mais fácil comprar carros de luxo para directores ao invés de materiais hospitalares e não há técnicos suficientes para atender a demanda, mas temos médicos angolanos que saem das faculdades que não são admitidos na função pública porque não há como pagá-los”, acusa.
Milhões para a saúde voaram, voaram
Segundo revelou o jornal português Expresso, suspeita-se que 3,8 milhões de euros tenham sido desviados dos cofres do Fundo Global — o maior financiador mundial de programas de luta contra a sida, tuberculose e paludismo. O dinheiro destinava-se a campanhas de redução da mortalidade por paludismo em Angola, que recebeu, desde Agosto de 2005, 94 milhões de dólares (86 milhões de euros).
“Houve desvio de fundos para fornecedores com ligações a elementos do Ministério da Saúde, concursos manipulados, não concorrenciais e não transparentes, que incluíram falsificação dos relatórios das avaliações das licitações”, concluiu a inspecção do Fundo Global.
As irregularidades apuradas pelo inquérito, segundo um documento a que o Expresso teve acesso, apontam para o “fabrico de bens e serviços que não foram entregues” e colocam a coordenadora financeira da Unidade Técnica de Gestão (UTG) do Ministério da Saúde, Sónia Neves, no centro do furacão.
As empresas Soccopress, Gestinfortec e NC&NN, Lda., com ligações a Sónia Neves, são apontadas como beneficiárias de pagamentos fraudulentos, depositados “em contas bancárias pessoais de empregados” do Ministério da Saúde.
A gravidade da situação, explica o jornal, levou a que, em Março de 2014, “fosse congelado o uso dos fundos” do programa. Suspensão que ocorreu no mesmo período em que Sónia Neves e Mauro Gonçalves, um dos proprietários da Gestinfotec, encetavam um cruzeiro turístico de sete semanas por Miami e Las Vegas.
Pagamentos a si própria
Escreve o Expresso que entre 2012 e 2014, Sónia Neves autorizou o pagamento de 2,4 milhões dólares (2,18 milhões de euros) a favor da Soccopress, empresa onde detém 50% do capital e as suas duas filhas menores os restantes. “Pagava-se a si própria e o mais grave é que, em alguns casos, os contentores chegaram quase vazios!”, disse fonte de uma ONG conhecedora do dossiê.
“Só com complacência dos responsáveis do Ministério da Saúde é que Sónia Neves poderia adjudicar à sua empresa, Soccopress, um contrato de auditoria e oferecer outra auditoria, sem concurso público, à Grant Thornton”, concluiu uma fonte da Procuradoria-Geral da República. A mesma fonte garantiu que o Governo já restituiu 2,9 milhões de dólares (2,6 milhões de euros).
Além de Sónia Neves, também o coordenador-adjunto do Programa Nacional de Controlo do Paludismo (PNCM) e proprietário da NC&NN, Nilton Saraiva, e a ex-assistente financeira da UTG, Ana Gega Sebastião, figuram na investigação como implicados no desvio dos fundos. A investigação atribui à NC&NN recebimentos ilícitos de 780 mil dólares (710 mil euros). E, à Gestinfortec, empresa onde Sónia Neves era diretora financeira, pagamentos irregulares de 762 mil dólares (693 mil euros).
“Um ano após esses pagamentos à Gestinfortec, a UTG não conseguiu apresentar documentação que demonstrasse que os produtos pagos tinham sido entregues”, lê-se no relatório final da investigação. Isto quando o paludismo e a febre-amarela matam aos milhares.
Paludismo mata que se farta
Conta o Expresso que, com engarrafamentos de carros funerários nos cemitérios, Adérito Ferreira, morador em Benfica, confessa “nunca ter visto morrer tanto”. O Hospital Américo Boavida, onde o paludismo mata diariamente dezenas de pessoas, foi obrigado a mobilizar, em regime de voluntariado, médicos recém-formados e enfermeiros reformados, revelou ao jornal a directora clínica, Lina Antunes.
A epidemia de febre-amarela já provocou centenas de mortos mas os números reais são, muitas vezes, colocados pelas autoridades “debaixo do colchão”, diz Luís Bernardino, antigo director do Hospital Pediátrico. No caso da febre-amarela, práticas de corrupção permitiam certificados de vacinação internacional falsos a quem viajasse para o estrangeiro. Perante a falta de medicamentos, compressas, seringas ou adesivo, por falta de divisas para os importar, Ana Paula Pereira, médica pediatra, teme, agora, o pior: uma epidemia de cólera.